quinta-feira, 3 de julho de 2014

Amor Esquecido.

Eu fui capaz de manter um sadio ceticismo sobre fantasmas, assombrações e todas as coisas sobrenaturais até meus 28 anos. Achava a maioria das alegações de tais coisas serem duvidosas na melhor das hipóteses e, na pior das hipóteses, prejudiciais. Eu estava mais inclinado ao campo da ciência clássica, por ter muitos anos antes estudado física na Universidade de Edimburgo. Enquanto minha profissão nunca me levou de volta para as áreas cientificas, eu tinha mantido até este momento uma posição implacável em relação a pseudociência e superstições.
Com frequência, meus amigos ficam pensando sobre a mudança que eles viram em mim na época. O que os surpreendeu é que não foi uma mudança constante e lenta do coração, mas sim uma reviravolta completa da noite para o dia; uma transformação, se assim quiser chamar. Visto de certo ângulo, parecia ter ocorrido muito rápido, mas na verdade aconteceu em uma escala de tempo ligeiramente mais prolongada; duas semanas para ser preciso.
Era Fevereiro, de fato era a semana do Dia dos Namorados (N.T: O dia dos namorados na Escócia ocorre dia 14 de fevereiro). Nessa época eu estava passando por uma fase de isolação social. É algo que muitas vezes acontece no sombrio inverno escocês, onde me torno cada vez mais agarrado a minha solidão e passando amargura para aqueles que “se encaixam”. Era, e ainda é, uma ressaca neurótica da minha adolescência, algo que me atormentou por muito tempo.
Duas semanas antes encontrei-me vagando pelas ruas de Edimburgo para limpar minha mente. Andar a pé, o quão engraçado que possa parecer, sempre foi um grande conforto para mim. Você está, em todos os sentidos, a sós com seus pensamentos, mas essa parte que almeja a companhia de outra pessoa é apaziguada por um tempo.
Edimburgo é uma cidade muito antiga e tem mantido notavelmente a forma de seu passado. As ruas de paralelepípedo serpenteiam o lado íngreme do que já foi um vulcão, rompendo-se esporadicamente em ruas estreitas que ocasionalmente se abrem para pátios isolados. Esses inúmeros pátios são geralmente ladeados por casas altas geminadas, amontoadas como se sussurrassem umas ás outras os segredos esquecidos do passado: a majestosidade de Edimburgo como uma cidade que frequentemente é perdida naqueles que viveram tempo suficiente para ver a beleza banal.
Como muitas vezes acontece quanto tomado pela depressão, eu não tinha dormido bem. Eu tinha terminado de trabalhar por volta das cinco da tarde e quando consegui dormir u pouco, minha mente não me deixava relaxar. As seis da manhã eu tinha conseguido dormir pouco, e mesmo que fosse domingo, admiti a derrota nas minhas tentativas de ter um bom descanso e levantei-me relutante para cumprimentar o mundo.
No momento eu já tinha percebido que ainda estava cedo da manhã e o frio gelado de janeiro ardeu em minha face. Apesar de Edimburgo ser, por falta de expressão melhor, uma cidade turística, naquela época ainda estava relativamente deserta, mesmo para um domingo. Uma ligeira névoa subiu pra fora das águas de Leith fazendo-me sentir ainda mais frio enquanto passava pelas ruas estreitas e calçadas vazias, totalmente absorto em meu caminho.
Enquanto as lojas abriam e as primeiras gotas de turistas começavam a vazar de seus hotéis para as calçadas de paralelepipedo, eu decididamente me desviei para outras ruas que geralmente são esquecidas. Minha mente distante tinha tomado conta de mim, pois quando sai de meus devaneios, eu estava de frente a um velho cemitério. Eu pensei em dar meia volta e ir para casa, mas algo deste lugar despertou uma compulsão em mim; eu tinha de explorá-lo.
Eu achei curioso que o portão, feito negras barras de metal, estavam entreabertas de manhã cedo num dia como aquele. Entrando no cemitério, eu imediatamente notei a isolação total do lugar, apreciando o som do cascalho debaixo de meus pés que quebrava o silêncio enquanto eu me direcionava lentamente por um caminho cheio de pequeninas pedras brancas.
Não era um cemitério grande. Parecia consistir em dois lotes separados, com os velhos túmulos á frente, beirando o muro e o portão, e mais para trás, conforme o terreno se afunilava em uma colina, se encontravam os túmulos dos falecidos mais recentemente. Os túmulos mais antigos carregavam as cicatrizes da idade. Encontrei um que estava datado do ano de 1776, porém o epitáfio estava ilegível. Eu senti uma tristeza olhando a lápide, e sem culpa alguma me imaginei como uma alma perdida ou esquecida.
Eventualmente eu me desloquei, subindo a colina em direção as sepulturas mais recentes. Me aproximei de um velho e grande Sicômoro que pairava acima de vários túmulos, com um comportamento quase que protetor. Eu fitei uma das lápides, lendo as palavras mas não as registrando, e minha mente foi engolida por outro devaneio. O túmulo se sobressaia de algum jeito entre os outros. Ele era branco, enquanto os outros que o rodeavam eram feitos de um mármore negro profundo.
Sem pensar, eu corri minha mão pela pedra lisa sentindo ocasionalmente as marcas dos elementos nela. Nos pés da sepultura estava um vaso pequeno e inofensivo. Era feito de um metal marrom (assumi que era cobre, pois na superfície deste podia-se ver pequenas veias de coloração azul por conta da exposição de variações climáticas de Edimburgo).
Enquanto fiquei de pé lá, algo brotou na minha mente. Algo que me aborreceu profundamente. De primeira eu não sabia o que era, julgando que fosse apenas um senso crescente de desconforto. Quando esse sentimento atingiu seu auge, eu percebi o que estava errado.
O nome na lápide era Lisa Maine.
Eu reconhecia bem aquele nome, assim como todos os moradores locais. Eu conhecia ela quando eu era adolescente, pois íamos a mesma escola. Ela era alguém que eu observava de longe, cheia de vida e exuberante, enquanto eu era tímido, recluso e reservado. Eu possuía uma paixão e desejo intenso por ela o qual apenas o primeiro amor produz.
As palavras na sua lápide se destacaram fortemente; 15 anos. Eu fui preenchido com um sentimento de luto e perda, o que me pegou de surpresa, tanto que tive que sair do lugar, pois não conseguia aguentar. Saí do cemitério o mais rápido que pude e fui para casa ignorando as ruas confusas de Edimburgo.
Eu não olhei para trás.
No decorrer dos dias seguintes eu estava inquieto. Eu tinha muito trabalho e dificuldade para dormir, mas isto não era incomum de mim. O incomum era as memórias de Lisa que não saiam de meus pensamentos; memórias e lembranças que me seguiam para todos os lugares.
Na época eu tinha sido afetado fortemente pela morte dela pois só tínhamos apenas 15 anos, mas isso fazia quase uma década e eu não pensava nela fazia muitos anos. Era como se o sentimento de perda tivesse acordado quando eu olhei a lápide, um sentimento de dor que eu tinha dado um jeito de enterrar tão profundamente dento de mim que tinha me persuadido a esquecer.
As memórias agora me assombravam; lindas e terríveis. A qualquer momento eu era presentado pelas lembranças do sorriso dela, o cabelo, a bondade, e depois engolido pela desesperante imagem dela enterrada a sete palmos debaixo da terra; fria e sozinha.. Antes tão cheia de vida e alegre, agora uma casca em decomposição, o qual outrora tinha sido a casa de uma alma tão bela.
Se eu tivesse contado a alguém como eu estava me sentindo, me chamariam de emotivo ou de sentimental, por um motivo; eu mal conheci Lisa. Observando ela por anos pela sala de aula, eu me imaginava falando com ela, compartilhando aqueles momentos que significavam tanto para um adolescente; o primeiro contato com alguém que você adora, o primeiro sentimento de ser amado, o primeiro beijo.
Eu mal tinha falado com ela até poucas semanas antes dela morrer. Em uma dessas vergonhosas manobras sociais que os professores do colégio as vezes fazem, os alunos eram forçados a formarem pares para ir ao primeiro baile. Para alguém como Lisa era algo a ser divertido e aproveitável, enquanto para mim era algo a ser detestado. Era constrangedor, possuindo nenhum talento relativo a dança e ainda com muito medo de passar um tempo com uma garota.
Era fim de janeiro, e na aula de dança onde praticávamos, Lisa rapidamente me escolheu para facilitar as coisas. Eu não consigo transmitir com palavras os sentimentos simultâneos de felicidade e medo que eu senti quando ela me pediu para levá-la até em casa naquele dia. Algumas pessoas acham que as interações sociais são cansativas, muito como eu que sempre fiquei preocupado em dizer algo errado, mas alguns indivíduos podem deixar os outros á vontade sem muito esforço; Lisa era uma destas pessoas. Á medida que atravessávamos uma ponte em estilo vitoriano para a casa dela, o sold e inverno brilhava confortavelmente. Eu não poderia estar mais contente de estar na presença dessa garota tão feliz e de coração bondoso. Ela era tão linda, com um sorriso incrível e cabelos dourados que pareciam fazer parte de uma personagem de contos de fadas.
Por semanas a gente fez o mesmo trajeto para casa. Conversando, rindo, e ficando cada dia mais próximos. Quando você está nesta idade, tudo é potente. Eu não tinha muitos amigos, e vivia sozinho com minha mãe que não era uma mulher muito afetuosa, então naquele curto período eu me apaixonei facilmente por Lisa Maine.
No dia 13 de fevereiro, nós paramos do lado de fora da casa dela. Ficamos conversando por uns instantes e então pela primeira vez Lisa se tornou distante. Ela olhou fixamente para mim de um jeito que nunca tinha feito antes. Me senti inquieto, porém ao mesmo tempo alegre. Houve um momento, um breve momento onde não falamos nada um para o outro, então ela me abraçou. Os dedos dela escorregaram em meus cabelos. Jamais esquecerei o quão doce era seu cheiro, o quão viva ela parecia, e o quão maravilhoso era me sentir amado como nunca tinha sido antes.
Lentamente ela me soltou e foi andando para a porta. Então antes de desaparecer dentro de casa ela se virou e sorriu para mim mais uma vez.
De imediato eu sabia o que iria fazer. Pela primeira vez na vida eu estava cheio de foco e propósito, um desejo de fazer apenas uma coisa. Eu corri o mais rápido que pude para o centro onde se encontravam as lojas. Eu tive sorte, pois a maioria já estava fechando. Um gentil senhor que administra uma antiga loja de cartões me deixou entrar, mesmo que já estivesse de saída.
Eu iria comprar meu primeiro cartão do Dia dos Namorados.
Tinha que ser perfeito. Tinha que ser a coisa certa. Depois de olhar quase todos os cartões que eu podia pagar, eu achei um. Era o destino. O cartão era vermelho com um círculo branco no meio. Dentro do circulo havia um menino e uma menina andando ao longe de mãos dadas, juntos. Eu não ligava o que estava escrito dentro, pois eu sempre tive um jeito com a escrita e sabia que conseguiria fazer um bom texto vindo do fundo do meu coração. Eu comprei. Depois de sair da loja de cartões eu fui direto para a banca de jornal local. Eu tinha salvado ainda minhas últimas 2 Libras. Minha mãe tinha me dado permissão de comprar lanche na escola toda semana, e eu sabia que ela não me daria mais para gastar. Com isso, eu tinha que ficar alguns dias sem comer na escola para ter algum dinheiro em mãos, e com o resto de minhas Libras eu comprei uma caixa de chocolate para acompanhar o cartão.
Eu esperei pelo dia seguinte. Foi tudo muito devagar.
O dia 14 de fevereiro. Eu nunca esquecerei o entusiasmo de me arrumar para a escola. Eu dei uma última olhada para os chocolates e o cartão antes de colocá-los na minha mochila. Eu acho que tinha deixado claro demais que eu estava carregando algo importante e delicado, enquanto andava com a mochila nos braços a maior parte do dia.
Eu estava tão entusiasmado, tão concentrado que eu iria marchar até Lisa e dar a ela o presente sem me importar no que os outros, o qual alguns podiam ser muito cruéis, iriam pensar. Porém ela não estava lá.
Ela não estava no parquinho, nem nas aulas. Nas matérias que dividíamos, eu fiquei apenas sentado olhando o lugar vazio dela. Bateu o sinal da escola e eu me vi fazendo o mesmo caminho que Lisa e eu fazíamos normalmente. Fiquei de pé do lado de fora da casa dela, segurando os chocolates. Eu não consigo descrever o sentimento que estava sentindo lá. Pode dizer que era a falta de comida ou o fato de estar totalmente preparado o resto do dia, mas a ansiedade tomou conta de mim o que resultou que eu não conseguia bater na porta dela. Voltei para casa, deprimido. Tanto que eu mal consegui comer uma garfada do presunto mal cozido de minha mãe, então eu simplesmente subi as escadas e rastejei até a cama, mal dormi durante a noite.
Nos próximos dois dias eu me vi fazendo o mesmo caminho de sempre segurando aqueles chocolates, sem me atrever a cruzar a cerca branca que ficava a frente da casa de Lisa. No terceiro dia eu perguntei a uma das professoras sobre as faltas de Lisa, algo que eu ainda não tinha pensado em fazer antes. Eu associava qualquer autoridade sendo um ser frio, distante e injusto, e com resultado eu normalmente evitava contato com os professores a qualquer custo. Sra Randall, nossa professora de História, me disse que Lisa estava com uma febre muito alta e estava muito doente.
Ela poderia se ausentar durante semanas.
Com a notícia eu estava decidido; Eu iria bater na porta dela, e bater na porta dela foi o que eu fiz. Eu bati, bati, bati mas ninguém respondeu. No dia seguinte fiz o mesmo e de novo nenhuma resposta. Agora faziam cinco dias da última vez que eu tinha visto Lisa. Era um sábado, e mais uma vez eu fui até a casa dela, com o chocolate e o cartão em mãos. Enquanto me aproximava de sua casa, o céu se encheu de nuvens, trazendo uma tonalidade monótona em cima da rua de Lisa, fazendo-a parecer deserta. Era claro que o pai de Lisa não era jardineiro. O gramado estava crescido demais com ervas daninhas espalhadas entre as fissuras do concreto que era usado para fazer um pequeno caminho em direção ao hall. Eu parei um instante e olhei ao redor para ver uma estátua de gnomo que estava claramente se afogando na vegetação alta; estava tristemente quebrado.
Muitos sugerem que quando algo está errado, alguém sabe. Essas pessoas podem ou não saber exatamente o que aconteceu, mas eles quase conseguem sentir uma sensação de pavor no ar. Eu olhei ao redor e continuei a andar para a porta da frente.
Algo estava diferente.
Eu estava certo que a casa parecia deserta como estava nos dias anteriores que eu tinha visitado, e mesmo que estivesse do mesmo jeito que antes, uma coisa tinha mudado. A porta da frente estava aberta. Eu estava certo de que ela estava fechada quando eu cheguei, mas eu deixei isso passar enquanto admirava o jardim mal cuidado. Veja só, eu não consigo explicar direito, mas havia algo sufocante sobre aquela casa naquela rua silenciosa.
Eu alcancei a porta e segurei a aldrava, batendo três vezes. Sem resposta. Eu repeti minhas batidas com mais força dessa vez, mas mesmo assim ninguém veio. A porta estava apenas levemente entreaberta, de um jeito que eu não conseguia ver muito bem o interior. Tudo que eu podia ver é que estava muito escuro e que o ar que saia da casa parecia bolorento, como se não estivesse habitada por muito tempo. Eu comecei a ficar nervoso. Eu não sabia realmente o porque.
Limpando a garganta e balbuciante eu perguntei “Olá?” várias vezes sem resposta. A rua estava vazia e o lugar parecia totalmente sem vida. Então um pensamento começou a ruminar e ganhar impulso dentro de mim. E se Lisa e seu pai estivessem machucados? Eu comecei a fazer todas as possibilidades na minha mente, os dois em alguma parte da casa, machucados e sem comer ou beber água por dias. Então eu lembrei que minha professora de história havia dito que Lisa estava doente. Ela tinha que ter falado com alguém que sabia sobre isso, provavelmente o pai de Lisa. Eu esperava que ela não estivesse tão doente que seu pai tivesse levado ela ao hospital.
Apesar de meus pensamentos lógicos, eu ainda não podia negar o horrível sentimento que algo estava de fato errado. O medo começou a se agarrar em mim, então fechei meus olhos por um momento e achei a memória de Lisa sorrindo que me deu o conforto que eu precisava para vencer aquilo. Eu segurei firmemente os chocolates e o cartão enquanto empurrei a porta para ficar totalmente aberta. Me movi silenciosamente, mas o barulho que a aldrava fazia por causa do movimento repentino da porta ecoou pela casa, porém mesmo assim ninguém veio.
A casa estava banhada em escuridão.
Eu dei uma última olhada em volta e cruzei a soleira. Mesmo que Lisa não viesse de uma família muito rica, a casa tinha dois andares e no mínimo quatro quartos e um sótão. Talvez o fato de que Lisa era filha única fazia a casa parecer maior ou mais vazia. Quando eu fui andando lentamente pelo corredor eu sentia como se cada passo meu ecoasse pelas passagens e quartos vazios.
Começando pela sala de estar no primeiro andar, eu fui de quarto em quarto ocasionalmente perguntando se alguém estava me ouvindo, mas rapidamente percebi que eu estava falando sozinho. O ar estava sufocantemente quente e passando minha mão pelo radiador eu percebi que a caldeira deveria estar ligada fazia algum tempo.
Quando eu fui em direção da cozinha no fundo da casa eu ouvi algo. Era quase como uma batida rítmica. Eu não conseguia identificar o que era, mas eu sabia que vinha do andar de cima. Saí da cozinha, o que eu fiquei muito feliz em fazer, porque estava cheirando a comida apodrecida, e andei em direção as escadas.
O lance de escadas era estreito e se estendia por dentro de uma parede. No topo da escada havia um corredor que dobrava para a esquerda e levava até outros quartos. A batida tediosa estava agora mais intensa e enquanto eu escalava lentamente os degraus, o medo que tinha se agarrado quando na porta da frente voltou a mim. A realização de que eu estava vagando sem ser convidado na casa de alguém veio á tona. Parando por um momento, eu fechei meus olhos e pensei em Lisa de novo. Continuei.
Quando cheguei ao topo, a batida parou; eu me arrepio agora só de pensar nisso. Haviam três portas que davam nos três outros quartos e uma que dava no banheiro que eu já havia visto que estava vazio. A porta para o primeiro quarto estava aberta. Eu espiei lentamente esperando ver alguém lá dentro. Não havia ninguém. Era o quarto do pai de Lisa, elegante, organizado e com quase nenhum objeto. A única coisa curiosa era que as cortinas não estavam abertas.
A porta para o segundo quarto estava fechada. De novo, eu fui invadido por uma sensação de ser um intruso ali. Eu estava andando dentro da casa de alguém sem ser convidado. Eu era um transgressor. Bati levemente na porta. Esperando por um tempo eu percebi que não devia ter ninguém lá, então segurei a maçaneta, e a girei. Abriu. Empurrei a porta e ela travou com apenas alguns centimetros de abertura. Algo estava bloqueando a passagem. Puxei em minha direção e depois empurrei de novo, porém sem sorte. Em cada tentativa a madeira da porta batia em algo. De repente eu fiquei ciente que o barulho que fazia quando eu empurrava a porta ecoava pela casa. Não era muito diferente do que eu tinha ouvido antes.
Eu tentei mais uma vez, empurrando contra o obstáculo com mais força possível. Sem sorte. Eu estava prestes a desistir e ir para a próxima porta quando eu vi o que estava bloqueando minha entrada. Eu jamais vou esquecer o olhar vidrado do rosto que parecia estar espiando pela fresta que fica entre a parede e a porta.  A pele era de um cinza pálido, alguns cachos de cabelo cobrindo a cabeça, e algumas gotas de suor congelados na testa. A maior parte de suas feições estavam obscurecidas pela porta, mas o único olho visível continuava encarando, oculto, coberto de sombras.
Eu não gritei porque percebi não só que era o rosto do pai de Lisa, mas que ele estava pra lá de morto. Eu me senti anestesiado, mas olhando de volta, percebo que consegui controlar a situação muito melhor que a maioria dos adolescentes naquela idade teriam, porém posteriormente eu comecei a ter uma estranha fascinação por isso, lendo muitos casos de mortes horrendas.
Eu me concentrei por um segundo, me compus, e instantaneamente meus pensamentos se voltaram para Lisa e onde ela estaria. Ela está no mesmo quarto? Ou estava no porão? Tudo o que eu desejava é que ela estivesse bem.
Então algo aconteceu. Um evento que até hoje eu reprimi, ignorei, e evitei o máximo que pude. Algo que me chocou o fundo da alma. Algo que nunca contei a ninguém.
O rosto que me olhava através da lacuna escura se mexeu. No começo, era apenas um movimento rápido, e eu ignorei como efeitos do choque da morte sobre corpo. Em seguida, mudou-se novamente. De repente, a porta começou a tremer violentamente como se estivesse sendo chutada e socada pelo corpo que estava atrás dela. O rosto se virou pra cima com um estalado do pescoço morto enquanto lutava contra cada movimento brusco. Um som borbulhante e pútrido soou ofegante, enfurecido de dentro de sua garganta inchada.
Fechei meus olhos. Eu estava certo que aquilo não era real. As colisões pararam, e a casa caiu em silêncio mais uma vez.
Eu dei um suspiro de alívio e abri meus olhos. O que eu vi, mal posso descrever agora. O rosto tinha mudado em direção á cima e ficou no mesmo nivel que o meu. A porta balançou e sacudiu sob a tensão do seu agressor venenoso que tentava fazer seu caminho através dela. Finalmente o rosto se empurrou e se apertou contra a fresta, revelando inteiramente suas características repulsivamente repugnantes.
Morto, coberto de sangue coagulado, ofegando incansavelmente por ar, o tempo todo olhando diretamente pra mim com ódio nos olhos e seus lábios repuxados para trás mostrando os dentes juntos. Eu não me lembro muito bem o que aconteceu depois disso, e eu sou feliz por isso. Eu sei que saí de lá, corri confuso para casa, chorando e balbuciando feito louco. Sei de mais uma coisa, que enquanto as memórias vem correndo por mim, eu lembro que aquela coisa conseguiu escapar e me agarrou. Como escapei...isso não lembro.
A verdade era mais assustadora do que eu poderia imaginar. O pai de Lisa tinha perdido seu trabalho algumas semanas antes e as contas se empilharam junto com a pressão de cuidar de sua única filha, ele enlouqueceu. Quando a polícia entrou na casa encontrou o corpo da pobre e doce Lisa no porão. Seus pulsos estavam amarrados ao radiador. Tinha sido estrangulada até a morte. Depois de matar a filha, o pai de Lisa foi ao quarto dela e se enforcou. Depois de uns dias pendurado, a corda que ele tinha usado para tirar sua própria vida parece ter arrebentado.  A polícia achou o corpo dele caído atrás da porta. A porta estava aberta.
Enquanto o tempo corroía as memórias, a explicação destes eventos se alteraram várias vezes em minha cabeça. Através dos anos na escola e na faculdade, eu li sobre pressão psicológica e como um trauma poderia fazer um ser humano alucinar. Eu me convenci que tinha encontrado o pai de Lisa morto e que o choque tinha produzido o resto da experiência. Não importa o quão real parecia, a idéia de que um cadáver se retorcia por raiva e ódio, talvez até pelo amor que sentia pela filha, poderia voltar a vida e atacar os vivos...Simplesmente não se encaixa nas minhas crenças científicas de ateístas.
Eu rejeitei toda a experiência, mas algo continua a me assombrar enquanto tento me esconder da verdade. A polícia relatou que Lisa tinha sido amarrada alguns dias antes de ser morta.
A morte foi datada em 15 de fevereiro.
Ela estava no porão, amarrada, assustada mas mesmo assim viva quando eu fui até a casa dela dar seu presente de Dia dos Namorados. As pessoas falam sobre assombrações e espíritos, mas a memória do rosto se contorcendo atrás da fenda não era nada comparado a saber que eu tinha estado na casa dela e que talvez eu poderia ter a salvo. Sim, eu era criança, mas eu poderia ter feito algo!
Eu cresci, mas nunca mais amei ninguém; aquele sentimento de conexão com outro ser humano. Eu desenvolvi um apego não-saudavel a minha própria companhia e me encontrei mais interessado em meter a cabeça em livros do que talvez conhecer novas pessoas, ou me apaixonar de novo. Os amigos que eu tinha nunca tinham sido realmente próximos; nem nunca entenderam direito quem eu era.
Ver o túmulo de Lisa tinha trazido tudo á tona. Os momentos perdidos, a coisa na casa, e a morte dela. O engraçado que de todas estas memórias, todas traumáticas e ao mesmo tempo preciosas, a única que jamais me abandonou era a do presente que eu nunca dei. Mesmo desejando que a morte de Lisa tivesse sido apenas um sonho, e que ela estivesse viva, eu ainda sentia que eu deveria corrigir esta situação.
Eu ainda tinha o cartão depois de todos estes anos, e em muitos aspectos, era o meu bem mais precioso mas ainda assim o mais detestado. Precioso pelas memórias que estavam gravadas dentro de mim e odiadas pelo mesmo motivo. Na manhã do dia 14 eu andei pelas ruas de paralelepipedo em sentido ao lugar de descanso de Lisa, no caminho parei em uma banca de jornal e comprei uma caixa de chocolates.
Na minha primeira visita eu tinha andado até lá por acaso, vagando simplesmente em transe, mas desta vez eu estava focado e decidido. Sentimento é uma coisa interessante e que tinha me feito manter o cartão e a fita da caixa de chocolate que havia feito na época. Quando entrei no cemitério, olhei para cima em direção da colina onde o túmulo dela se encontrava. Me senti hesitante. Não porque eu não queria deixar os presentes no seu túmulo, mas porque eu não sabia até que ponto o sentimento de remorso, tristeza e nostalgia poderiam tomar conta de mim de novo. No entanto, depois de um tempo eu refiz meu caminho andando sobre as pedrinhas brancas, subindo a colina.
Lá eu fiquei. O sol ainda estava relativamente baixo no céu e fazia que tudo o que eu olhasse ficasse exageradamente contorcido com as sombras banhando tudo. Depois de ficar por lá pelo que pareceu uma década, tirei a fita do bolso, amarrei cuidadosamente em volta da caixa e então coloquei os chocolates e o cartão em cima da pedra fria da sepultura.
Não sei se disse algo. Naquele momento provavelmente não, pois eu não estava convencido que ela estava lá para me ouvir; que uma vez que meus entes queridos morrem, eles se vão para sempre; que a morte é o fim. Eu sei que chorei. Eu chorei como não tinha chorado desde criança. Eu caí em meus joelhos e enterrei meu rosto nas mãos. Eu estava inconsolável.
Eu tinha ouvido e lido sobre pessoas tendo experiências religiosas e espirituais, e enquanto eu não podia aceitar verdadeiramente os testemunhos dos outros, o que posso dizer é que o que eu senti naquele momento foi profundo...um sentimento dolorosamente lindo de companheirismo e amor. Eu olhei em volta. Ninguém estava lá, mas senti como se estivesse. Eu tentei me livrar da sensação achando que minha mente estava só brincando comigo, mas eu simplesmente não conseguia, por mais que tentasse. Aquele sentimento era uma “emoção dupla”. Eu só tinha me sentido daquela forma uma vez antes; quando Lisa me abraçou na última vez que nos vimos. Enquanto a sensação tomava conta de mim, eu percebi que eu tinha estado procurando incansavelmente pela mesma sensação, mas nunca tinha encontrado até aquele momento.
Eu me levantei, enxuguei meus olhos e toquei a sepultura como se dissesse adeus. Andei para a entrada do cemitério com um sorriso que ia de orelha a orelha, algo que qualquer um que me conhece bem diria ser extremamente raro. Quando eu cheguei ao portão eu olhei para a colina mais uma vez, que para mim não era mais um local de solidão, e sim amor e amizade.
A segunda e última vez que eu posso dizer que vi um espírito foi naquele momento, de pé atrás do túmulo de Lisa estava uma imagem embaçada de uma moça em um vestido de dança rosa. Eu não corri para a sepultura, pois sabia que não precisava. Ela acenou lentamente para mim e desapareceu lentamente.
Eu andei pela casa. Eu me sentia completo, contente e exuberante. É quase impossível de descrever a experiencia do cemitério, mesmo que eu a tenha feito em plenitude.
Meus amigos se perguntam o que aconteceu comigo naquela época. O fato é que eu encontrei algo que eu nem sabia que me faltava. Alguns lendo isso podem pensar que eu encontrei minha fé, mas não foi isso. O que eu encontrei aquele dia foi o companheirismo e aceitação da única pessoa que eu já amei. Sabia que daquele dia em diante o mundo tornara-se muito mais misterioso e maravilhoso do que eu jamais fui capaz de imaginar. Eu sabia que nunca mais temeria ficar sozinho, pois quando vago pelas ruas de Edimburgo e me encontro em um lugar calmo sem nenhum passante por perto, eu sorrio sabendo que se eu escutar cuidadosamente, posso ouvir os passos de Lisa, a garota que eu amei tão profundamente quando criança, andando comigo para onde quer que eu vá.




Autoria de Michael Whitehouse.



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